Queimar livros, Richard Ovenden

“As bibliotecas e os arquivos enfrentam um novo desafio existencial, desafio esse que afecta a sociedade no seu todo. O conhecimento digital é cada vez mais regulado por poucas empresas de enorme dimensão e tanto poder que, quase sem querer, controlam o futuro da memória cultural, com implicações e consequências de que só agora começamos a ter consciência.”

Queimar livros, Richard Ovenden

diário #20230817

A senhora da caixa do Pingo Doce chamou-me de princesa. Não sei o que pensar disso. Estou quase a ir de férias de novo, vou fazendo férias assim, às pinguinhas e de borla, em casas de familiares. Gosto de ouvir as pessoas que reclamam do alojamento local em Lisboa contarem-me as suas férias alojadas localmente noutros países. Consegui limitar os livros que tenho em casa por ler a 4 prateleiras pequenas. Tenho outra prateleira com os livros que fui deixando a meio, a que chamo patriarchatus interruptus. Sinto que está iminente mais um ataque das formigas, encontro-as isoladas em vários cantos da cozinha, a fazerem o reconhecimento, a triangularem sinais, para fatalmente encarreirarem em direcção à despensa. Já aceitei que esta é uma guerra que não ganharei. Não me convenço a começar a escrever sem ter a certeza de que não vou ser interrompida. Como em 99% do tempo sei que o vou ser, não começo nada a sério nunca. A ficção científica que tenho lido ultimamente fez-me crer que este é o tipo de literatura mais filosófica que tenho encontrado; deixa-me dias a pensar após ter terminado os livros. Leio demasiado, leio para não pensar, como quem bebe para esquecer. Uma solidão intensa pulsa dos sítios da nossa infância que desapareceram. A minha mãe arrelia-se comigo porque não consigo fazer planos a longo prazo, porque eu, ao contrário dela, sei que é demasiado difícil atingir um alvo em movimento. Apontamos para o futuro a partir do presente e quando lá chegamos está tudo desfocado, acertámos ao lado, tudo virou passado. Que bela bosta de frase, eu sei, é foleiro mas é verdade. Ontem matei uma bicha-cadela na secretária, até aí achava que elas só existiam dentro do caroço dos pêssegos. Levei dois dias para me lembrar da palavra mosquetão.

diário #20230628

Basta um pouco de álcool para o censor dentro de mim tombar adormecido. Que é o grande amigos dos escritores já sabemos, mas verificá-lo em acção surpreende-me sempre. O perfeccionista fica a dormir e o “outro” avança cheio de coragem. Felizmente, enfim, não bebo regularmente, só quando o Auchan me oferece umas latas nojentas de bebidas misturadas de refrigerante com vodka que imagino que as pitas gostem. Não gasto dinheiro em putas nem em vinho verde mas apoio solidariamente quem o faz. Não gasto dinheiro em álcool, não vou ao cabeleireiro, não vou a restaurantes, não fumo, não faço unhas de gel, não vou à bola, não vou ao ginásio. Continuo a periodicamente a gastar dinheiro em roupa em saldo na vã tentativa de um dia ter bom aspecto, vá, não exageremos, ter um aspecto digno, de pessoa que paga os seus impostos e merece respeito, mas ao fim do dia, quando chego a casa, acabo invariavelmente como as crianças dos memes do primeiro dia de escola, aquele ar de troll ranhoso que acabou trepar de dentro de um caixote do lixo. O trabalho está a tornar-se uma caricatura, horas perdidas em burocracias ridículas e formações infantilizantes, obrigatoriedade de ir ao escritório três vezes por semana para trocar emails com pessoas sentadas ali ao lado, e que passam por mim sem sequer dar bom dia. E atura-se tudo com gosto e um sorriso para podermos comer. O meu filho diz que quer receber cartas, que gostava de ser como eu e o pai, sempre a receber coisas pelo correio e eu explico-lhe que receber correspondência geralmente não é fixe porque significa ou que já pagaste ou que terás de pagar alguma coisa. Por falar em pagar, a ginecologista disse que os meus ovários são um espectáculo, que a mulher que entrou antes de mim quer engravidar e, sendo mais nova do que eu, tem uns ovários mais envelhecidos do que os meus. Sinto-me mal por desperdiçar ovários tão bons, é injusto a mulher anterior não os ter melhores do que os meus, é uma estupidez eu pensar isso, eu sei, mas não consigo deixar de sentir culpa e que devo um pedido de desculpa a alguém. Se pudesse trocaria de ovários com a mulher, mas não posso. A culpa e o medo são o meu combustível.

Happiness is bullshit

The truth is, we’re animals—specifically, apes. Our brains are the product of evolution. It would be very strange if evolution made us want happiness as our number one goal. Happiness is inside our heads—it’s not out there in the world. It has no connection to survival or reproduction, which kind of has to exist if we evolved to want it. Eudamonia and self-actualization make even less sense as evolved goals.

What we want, as apes, is much more straightforward.

We want sex. We want to be sexy. We want tasty yum yums for our face-holes. We want to establish dominance, or we want to display submission. We want to stay warm, avoid snakes, use tools, support our tribes, not be on fire, ascend social hierarchies, form alliances, show off our health and virtue, nurture cute babies (preferably ones that share our DNA), and make people feel indebted to us (so they’ll help us in the future when we’re sick or injured).

These are the sorts of things we want—the things that helped our ancestors survive and reproduce. Not happiness.

Once we accept this fact, everything starts to make sense. Why do we read so much bad news? Because scary stuff can kill us and happy stuff can’t. Why are we bored by Positive Psychology? No sex or death in it. Why do we work too much? Status anxiety. Why do we simmer in anger and shitpost on Twitter? Dominance. Why do we beat ourselves up and stay friends with assholes? Submission. Why do we have kids, even though they make us miserable? Come on.

in Hapiness is Bullshit, David Pinsof

https://everythingisbullshit.substack.com/p/happiness-is-bullshit

Weather, Jenny Offill

“They tested worms in the city sewers and found they contained high concentrations of Paxil and Prozac.

When birds ate these worms, they stayed closer to home, made more elaborate nests, but appeared unmotivated to mate. “But were they happier?” I ask him. “Did they get more done in a given day?””

in Weather, Jenny Offill

diário #20230513

Na última semana, 4 pessoas que respeito, em 4 sítios diferentes, transmitiram-me a mesma mensagem: devo dizer não a tudo o que não me interessa. Se isto não é um sinal, é uma piada de mau gosto. Parto do princípio que este dizer não seja para poder dizer sim a coisas que me interessam, isso se conseguir escapar dos tentáculos da auto-sabotagem, em que sou especialista. Suponho que um pássaro terá entrado na minha cozinha enquanto trabalhava na sala porque tinha merda de pássaro no chão, coisa que aconteceu duas vezes e me deixou em dúvida se não seria outro rato na varanda, mas após extensa análise coprológica, decidi-me pelo pássaro, até pela localização dos excrementos, directamente por baixo do candeeiro de tecto. Janela fechada nos próximos meses, está visto, que os melros, isto já sou eu a extrapolar, estão cada vez mais ariscos. As novas escritoras que tenho conhecido ultimamente são todas bonitas e isso é me desconfortável. No que tenho lido ultimamente, os arcos dos heróis femininos (heroína é uma droga) raramente são arcos isolados de grande coragem ou valentia, não são actos que se realizam extraordinariamente uma vez e a partir do qual tudo muda para sempre. São rituais, repetitivos, infinitos, pequenas coisas que se vão acumulando até tombarem a pedra pelo monte abaixo. É uma cruz que carregamos.

O arco narrativo

Fico comovida quando encontro histórias que começam mal, melhoram lá pelo meio e depois colapsam, ao contrário da norma de Hollywood, da jornada do herói que encontra um problema que invariavelmente acaba por resolver. Parece-me mais genuíno, estamos na merda, acontece uma coisa boa mas ficamos logo à espera da merda que virá a seguir. Lembrei-me do Flores para Algernon quando vi o Despertares, esta semana.

Sete mulheres

No último século dormiram naquela casa sete mulheres e apenas dois homens. Não as conheci todas, duas morreram antes de eu nascer. Arranco as silvas e as heras, corto ramos ladrões e planeio caminhos no quintal. Faço uma lista das plantas que irei adicionar, algumas para substituir outras idênticas que se deixaram morrer. Esta é uma casa de velhas, que aqui viveram e morreram, arrastando-se pelo quintal agarradas a um sachito como bengala. Há quem diga que eram bruxas, mas quem sou eu para desmentir?

diário #20230416

Ontem o peixe estava a morrer. É quase uma lapalissada, estamos todas, minha cara, estamos todas. Aujourd’hui le poisson est mort. Deixou de comer durante a última semana e encostou-se ao fundo do aquário “com falta de ar”. Tinha muitos anos este peixe. Não sei se compre um novo. Acho uma violência um animal ali preso e quem se lembraria todos os dias de dizer em voz de polícia, já deram comida ao peixe, senão eu. É um trabalho emocional que retiro da minha lista. Nas últimas semanas li muito e contraria-me ter de abrandar o ritmo porque já não estou de férias. Nasci para o ócio e para me alimentar de chá com torradas a todas as refeições, mas a vida não mo permitiu. Agora que compro muitos livros em segunda mão fico entusiasmada sempre que encontro sublinhados ou símbolos a marcar o texto. Nunca escrevi a caneta nos livros e sou contra isso por princípio, mas na prática fico contente por poder imaginar a outra vida que leu aquelas páginas, quem seria, e se poderíamos ser amigas. No Ongoingness e 300 Arguments da Sarah Manguso dobrei os cantos a quase todas as páginas, já não é um livro, é um origami. Apetece-me lê-lo muitas vezes ainda que tenha acabado de o ler. No ebook reader não me dá tanto para marcar os textos, se bem que aquilo o permita. Não é a mesma coisa. Comecei a ler o The Creative Act: A Way of Being do Rick Rubin mas vou passar a fazê-lo com um lápis na mão. Apetece-me sublinhar e acrescentar sinais de pontuação. Estou decidida a escrever pelo menos um parágrafo por dia, so help me god. A Sarah Manguso diz que escreve para parar o tempo; como é que eu não me lembrei disso antes? Sim, eu sei que não sou a Sarah Manguso, porra, mas coisas assim tão simples e belas deviam ser mais óbvias.

diário #20230324

A primavera bateu-me hoje com força. Tenho a roupa suada e colada ao corpo, num exagero invernal de camadas. Cheira a flores. A nova água das pedras manga laranja sabe a safari-cola e a desilusões adolescentes. Ainda não larguei o vício de cismar no que faria se ninguém soubesse, o testemunho inequívoco da minha profunda cobardia. Daqui a uma semana estarei de férias. Começo a ver uma série mas a atriz que faz de mãe tem quase a mesma idade da que faz de filha e as idades de ambas distam demasiado das idades das personagens que interpretam. Não consigo aguentar e desisto ao fim de 2 episódios. No youtube acelero os vídeos x1,5, todos me parecem lentos a falar, a explicar e a reagir. Na vida real infelizmente não posso fazê-lo e isso deixa-me impaciente. Será isto um transtorno mental? Uma disforia de velocidade? Hoje foi o primeiro dia do ano em que tive calor. É como se renascesse.

compaixão e literatura

“Eu sinto por Ólenka aquilo que imagino que Deus sentirá. Sei tantas coisas sobre ela. Nada me foi escondido. É raro, no mundo real, chegar a conhecer uma pessoa tão completamente. (…) E vejam só isto: quanto mais informação acumulo sobre ela, menos inclinado me sinto a julgá-la prematuramente, ou de forma demasiado severa. Acendeu-se em mim uma forma essencial de misericórdia. Querem saber aquilo que Deus tem a Seu favor, e nós não temos? Informação infinita. Talvez seja por isso que Ele, supostamente, é capaz de nos amar tanto.”

Nadar num lago à chuva, George Saunders

sentimentos sinceros

“Incomoda-me ver que, com o passar do tempo, perdi a capacidade de ter sentimentos sinceros, e que me vejo obrigada a fingi-los imitando as reacções dos dos outros.”

A Trilogia de Copenhaga, Tove Ditlevsen