compaixão e literatura

“Eu sinto por Ólenka aquilo que imagino que Deus sentirá. Sei tantas coisas sobre ela. Nada me foi escondido. É raro, no mundo real, chegar a conhecer uma pessoa tão completamente. (…) E vejam só isto: quanto mais informação acumulo sobre ela, menos inclinado me sinto a julgá-la prematuramente, ou de forma demasiado severa. Acendeu-se em mim uma forma essencial de misericórdia. Querem saber aquilo que Deus tem a Seu favor, e nós não temos? Informação infinita. Talvez seja por isso que Ele, supostamente, é capaz de nos amar tanto.”

Nadar num lago à chuva, George Saunders

sentimentos sinceros

“Incomoda-me ver que, com o passar do tempo, perdi a capacidade de ter sentimentos sinceros, e que me vejo obrigada a fingi-los imitando as reacções dos dos outros.”

A Trilogia de Copenhaga, Tove Ditlevsen

uma vida independente

“Quando lhes digo qual a profissão do meu pai, presumem que terei de viver dos meus rendimentos, e afirmam que o salário que estão a oferecer nunca teve como intuito permitir a quem quer que fosse levar uma vida independente.”

“Mas o que mais quero é ter um sítio onde possa treinar escrever poemas a sério. Gostava de ter um quarto com quatro paredes e uma porta que pudesse fechar. Um quarto com uma cama, uma mesa e uma cadeira, com uma máquina de escrever, ou um bloco de papel e um lápis, nada mais. Bom, sim, uma porta que pudesse trancar.”

A Trilogia de Copenhaga, Tove Ditlevsen

cuando vai duer

“Não sabia o que ele ia faser e agarrei forte a cadeira como às veses cuando vô ao dentista só que o Burt tanbem não é dentista mas foi disendo cenpre para eu relachar i iço açustoume purque só disem iço cuando vai duer.”

Flores para Algernon, Daniel Keyes

Uma falha de carácter

“Mas a verdade é que ela é boa a controlar os seus impulsos. É por isso que não está morta. E é também por isso que se tornou escritora e não viciada em heroína. Ela pensa antes de agir. Ou, mais propriamente, ela pensa em vez de agir. O que é uma falha de carácter, não uma virtude.”

Jenny Offill, Departamento de Especulações

diário #20230306

Encontrei na despensa sopas knorr que passaram da validade em 2020. Como consegui atravessar os confinamentos sem gastar as sopas knorr é um mistério. Estar numa esplanada no centro de Lisboa dá vómitos. A cidade cheira a esgoto quando não cheira a escape de carros, chego a casa enjoada da viagem mas ainda mais de todos os cheiros hostis. O facebook faz-me lembrar aqueles cartazes das festas de aldeia, as páginas do teletexto e os classificados do correio da manhã. Um aglomerado de anúncios obsoletos, mau design, banha da cobra e azeite. Há dias em que tenho vergonha de não ser lésbica. Em “Os pais dos outros” de Romana Petri diz-se que há dois tipos de pais: os que são cobardes e os que não são. Um mundo que se abriu à minha frente. Quando não tenho entretém analizo os que conheço, a ver para que lado caem. Também eu sou cobarde, não me estou a queixar. Atendo o telefone e perguntam-me se estou bem disposta. Nunca sei o que responder, é das perguntas que mais mal disposta me deixam. Há uma exaustão específica proporcionada pelo esforço feito ao tentar explicar uma coisa desagradável sem que a pessoa a quem a explicamos leve a mal. A dança em volta do assunto, os argumentos dúbios, os dois passos atrás para poder dar um à frente dissolvem-me a paciência e aniquilam-me o ânimo. Não nasci para enganar os outros. Já a mim mesma, eu própria, é toda uma outra história.

Dois vidros de separação

Pela janela do autocarro vejo um pato a mergulhar. Assim fica durante bastante tempo, com as pernas no ar a abanar, o rabo espetado em direcção ao céu, e a cabeça debaixo de água. É o pequeno milagre que consola o meu final de dia.

Quatro vidros de separação

Está um casal ao meu lado de roupão na rua. Está um casal de roupão no elevador. O elevador é de vidro e dá para a rua. Estou no autocarro a ver um casal de roupão. Estão no elevador de vidro do hotel que tem uma parede de vidro também. Está um casal de roupão a deslocar-se de elevador no hotel, provavelmente vão para a piscina. Estou na rua dentro do autocarro a vê-los passar por mim com os seus roupões. Passam por mim na vertical, enquanto eu passo por eles na horizontal, três vidros de separação. Boa natação!

Fevereiro

Sobreviver a janeiro, aí está um bom objetivo. Tenho moscas na cozinha; não devia haver moscas na cozinha em janeiro. O meu filho pergunta-me quantas pernas tem um porco, eu digo quatro e ele responde, então este fiambre é da quinta perna, eu já a desfalecer à espera da piada ordinária e ele, muito inocente, sim, é da perna extra. Adormeço todos os dias com o advogado do diabo (com dê pequeno), não ao meu lado, mas dentro da cabeça. Um autocarro desloca-se a setenta quilómetros hora na autoestrada. Estão nove pessoas dentro do autocarro. Quão intensa é a sensação de morte iminente? Sísifo apanhava o mesmo autocarro todos os dias para ir lá para o sítio onde empurrava a pedra, oito horas, pausando uma para o almoço. Mas se empurrasse a pedra mais meia hora por dia, à sexta-feira podia sair duas horas mais cedo. Só que isso nunca acontecia, o sair mais cedo, digo, não o fazer mais meias-horas, dessas era um fartote. Arranja um trabalho de que gostes e nunca ganharás bem, dizia Sísifo, enquanto esperava pelo autocarro na rotunda, nauseada pelo cheiro plúmbeo dos gases de exaustão das viaturas automóveis. Li não sei onde que a felicidade não é um uma finalidade mas sim um subproduto, uma excrescência. Para mim está bem. Ou como diria um programador informático, sadness is not a bug, it’s a feature.

Annie, Ana, Anita, Aninhas, Anna, Hannah, Anne

“Que escrever era difícil. Que durante muito tempo – anos, décadas – não podia viver nesse outro universo que era a escrita. Que trabalhava como professora, tratava dos filhos, ia ao supermercado e cozinhava. Que essa vida lhe trazia sofrimento. Que lhe faltava sempre o tempo ou a força para escrever. Que nessa fase pensava em desistir de escrever. Que sentia estar a estragar a vida do marido e dos filhos. Que nunca se perguntava o contrário: se seriam eles que estragavam a vida dela.”

Annie Ernaux via Ana Pessoa

Apontamentos sobre Memórias de Adriano

“Impossibilidade também de tomar como personagem central uma figura feminina, de dar, por exemplo, como eixo à minha narrativa Plotina em vez de Adriano. A vida das mulheres é limitada de mais ou excessivamente secreta. Que uma mulher se conte, e a primeira censura que lhe será feita é a de deixar de ser mulher. Já é bastante difícil pôr qualquer verdade na boca de um homem.”

Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar

Gilead, Marilynne Robinson

“É um dos melhores traços das pessoas boas, que amem quando têm pena. E isto é mais verdade para as mulheres do que para os homens. Elas são assim arrastadas para situações que lhes são prejudiciais. Vi isso acontecer muitas, muitas vezes. Sempre tive dificuldade em encontrar uma maneira de prevenir contra isso.”

Talvez este seja um dos livros mais surpreendentes que li este ano. Passado na América profunda entre os profundamente crentes, mostra uma faceta da religião que o meu preconceito, ou que as formas mais populares e visíveis da religião não me tinham permitido conhecer. Uma escrita humana, serena e mística, sem banalidades, moralismos ou folclore cristão. A simplicidade, integridade e subtileza da escrita de Marilynne Robinson é apaziguadora e calmante. Um livro muito bonito.

(Agora vou ter de ler os outros “Casa” e “Jack” também sobre a família do reverendo Boughton)