Baixa

Não chorarás no horário de trabalho
Não serás infeliz a não ser à hora do almoço
Problemas só ao fim de semana
E doenças apenas nas férias
Desgostos e sofrimentos antes de picar o ponto
E defuntos só no feriado
Refeições de preferência só uma vez por dia
E sempre pratos que a minha avó não reconheceria
Conversas sobre bimbis airfriers e nespressus
E como arranjar férias baratas e longínquas
também já fui burguesa de coração e carteira
agora tenho passe e sou pobre de espírito
o verdadeiro luxo não é ser puntacana
é não ter de pensar em nada
I don’t wanna be funny anumore


diário #20240315

Não consigo escrever com outra pessoa na mesma divisão, não consigo dormir com alguém encostado a mim. Às vezes lampejam-me dúvidas se serei psicopata ou sociopata, mas li demasiados livros sobre o assunto para saber que não, não há hipótese nenhuma de isso ser verdade. Às vezes sinto que gosto de coisas diametralmente opostas ao que devia gostar. Sinto me zen e não sei o que fiz para isso. Devia sentir-me muito só e não sinto. Devia revoltar-me contra uma série de coisas mas já não lhes dou o valor que daria noutra altura. Pairo sobre a realidade. Nada me aborrece ou entusiasma muito e não é dos comprimidos. No verão terei de voltar a pintar as unhas dos pés de preto porque já tenho outra vez uma unha negra. Unha negra é um bom título para uma cena qualquer. Continua a querer ter um colar de mafioso, o penchant for all things masculine, nossa senhora da testosterona me valha. Calar-me e não escrever é passar a mão pelo pelo e reforçar-me que fiz bem em nunca tentar fazer o que quer que seja que não obedecer. Porque choras mesmo sabendo que tens razão? Porque sabes que ter razão não importa, serás sempre prejudicado, dominado, abafado, por falares, pensares, sentires. Existes de forma errada. Tens medo e tens razões para isso. Fiz o meu caminho na lama e já não preciso que os meus pais gostem de mim, sou completamente indiferente aos seus sentimentos. Não preciso que gostem de mim, só que não me insultem. Vou fazer o jantar, das poucas cruzes que ainda carrego, estou cansada, é sexta-feira e a semana foi complicada para as articulações. Queria uma cerveja mas não há porque tem glúten.

Jogos florais

No primeiro dia deus fez as cerejas
no segundo dia os automóveis
e no quarto os parques de estacionamento
ao quinto dia encheu-se de nódoas de cereja
e inventou a lixívia
mas como dava trabalho lavar a roupa
ao sexto inventou as mulheres
e fe-las regularmente sujarem tudo
de vermelho como as cerejas
ao terceiro dia fez um pinhal em Fernão Ferro
e stands para vender os automóveis
ao sétimo dia descansou
porque já tinha mulher a dias
depois inventou o homem 
e este inventou os livros, as rotundas
e as reuniões de condomínio
porque também já tinha mulher a dias

diário #20240308

Fui fazer um exame aos olhos e saí de lá de óculos escuros, a ver tudo desfocado e com uma rosa na mão. A doutora deu-me os parabéns por me ter portado muito bem durante o exame, não é toda a gente que consegue estar quietinha enquanto a torturam; dito assim parece uma qualidade, mal sabe ela que é o meu maior defeito de carácter. Gosto quando os médicos me tratam como uma atrasadinha mental porque é a personagem mais fácil de interpretar do meu repertório. Esta semana espalhei-me ao comprido na rua, tive de avaliar vários colegas, fui a um velório, tive dores como já não tinha há algum tempo e há uma soneira pesada que não me abandona não sei porquê. Já vamos tarde no inverno para se me acometer esta vontade de hibernação, agora que os dias medram e já há morangos no Lidl. Tenho ido ao cinema e já não me lembrava porque gosto tanto — basicamente é por estar sozinha numa sala escura e sem mexer no telemóvel. As pessoas que passeiam pelas Amoreiras a meio da tarde parecem figurantes do Succession e usam a música do genérico como toque de telemóvel. Dói-me a cabeça de tanto franzir o sobrolho para evitar a luz. Ensaio umas frases para o Instagram mas não dá, nunca saberei escrever bonito, escrevo como um porco que fuça, desorganizada e sofregamente.

diário #20240302

Tenho de aprender a viver melhor com o caos. Não estar sempre a tentar domá-lo. Felizmente tenho sido poupada a grandes sofrimentos, daí a assumpção que a vida é domável e há uma maneira certa de fazer as coisas. Ilusionismo puro.

O medo é um poderoso combustível

<< Parafraseando o escritor inglês Edward St. Aubyn, o criador dos romances semiautobiográficos Patrick Melrose, “a infância é apenas a história das coisas a que prestámos atenção”. >>
in Viajar na maionese, João Pedro George

A expressão “romance semiautobiográfico” deu-me vontade de rir.

diário #20240101

Porque é que evito escrever? Pela quadragésima terceira vez vou começar de novo, a tentar fazer tudo bem sem me enganar, que é a pior maneira de começar a fazer as coisas. Sei o que devia fazer em vez de apenas pensar. Desbastei-me como se faz aos cavalo para que se tornem úteis, retirando-lhes a bravura e a espontaneidade; tornei-me num pónei da feira popular, acessório e lamentável. Dá-nos uma das tuas frases que tanto nos diverte, o ridículo do teu quotidiano descrito à minudência. Vou a pé, não preciso de poupar energia para o ginásio como os burgessos que nunca sobem escadas ou carregam sacos de compras. A minha avó nunca foi ao ginásio. Tenho a noção das minhas limitações e não estico o quotidiano ao limite para não me enlouquecer nem aos que me rodeiam. Não me incomoda a mediocridade, não arranjo um segundo emprego, não faço trabalhos manuais com o meu filho, não abraço causas que não consigo suportar, não me supero. O que consigo manter, em harmonia com uma certa satisfação no quotidiano a que alguns chamam de felicidade, é uma vida de cidadã funcionária suburbana com olheiras, que frequenta o supermercado ao fim de semana, com roupa de sobrou dos saldos. Eu sei quem tem nojo de mim. Uma das melhores formas de desobediência é a obediência estrita, minuciosa, inflexível. Apetece-me comer canja e pão com manteiga. Vejo passar o autocarro que perdi, que merda, mas logo penso, se calhar ia cheio, se calhar vem outro rápido com muitos lugares disponíveis junto à porta como eu gosto, afinal foi bom perder o autocarro. E ando assim, a vida toda em pêndulo, a tentar perceber o que será bom, o que será mau, e para quê.

Péga!

Há uma ternura especial quando te passam um pedaço de maçã descascada segura pelos dedos nus e ainda apoiada na faquinha com cabo de madeira, enquanto assentem com a cabeça, como se ainda fosses criança.

(Eu sei que pega não tem acento mas preciso que se perceba que não é um pássaro barulhento. E com isto estraguei tudo.)

A substituta

O professor de espanhol está de férias por isso tenho aula com uma professora nova com forte sotaque italiano. Não consigo responder rapidamente, o sotaque confunde-me e começo a patinar misturando italiano com espanhol, que felizmente por vergonha não chego a vocalizar. Aconteceu-me o mesmo no outro dia quando uma turista francesa me veio pedir direcções em inglês, deixando-me sem palavras para expressar uma frase básica porque o meu cérebro entra em loop sem conseguir decidir se é para falar em inglês ou francês. A aula é caótica, a professora uma personagem, e como só a vou ver uma vez, decido não me dar ao trabalho de lhe responder com a verdade, mas sim com aquilo que eu acho que ela quer ouvir, não criando dúvidas ou perguntas adicionais, e sem descarrilar a conversa. Decidi há uns tempos que isso não é mentir, é apenas uma boa gestão de tempo, recursos e disposição. Há dias em que estou para isso, outros não.

diário #20231014

Rogo pragas à hortelã do supermercado por me ter trazido lagartas para a varanda. Tenho tudo roído e estou farta de saber que devo semear as ervas aromáticas para não ter infestações vindas de fora. Tudo por preguiça de esperar que a hortelã cresça. As frésias estão espigadotas demasiado cedo, receio que não cheguem a bom porto; já os crisântemos prometem estar lindos nos finados. Não me apetece ler os livros que tenho em casa e ando cheia de gula pelas novidades que sairão até ao natal. Passo o dia a pensar em dinheiro e isso repugna-me. Tenho de ir ao médico, ao oftalmologista, tenho exames para fazer, há dois anos que o carro não vai à revisão, o seguro anual da casa é em novembro, o natal é em dezembro, revertere ad locum tuum. Abro o calendário e tento definir uma estratégia. Menos dinheiro é também sinónimo de menos tempo. Passei a fazer 10 minutos de meditação guiada quando chego a casa, nos dias em que tenho de sair para o trabalho/ruído/transportes públicos, numa tentativa de refrear o estado de stress/ansiedade/exaustão que me provoca. Tem resultado — evita que se prolongue o estado reactivo/sobreestimulado/frenético em que chego a casa. Termino os episódios do The Bear e aborrece-me que tenham “estragado” a série com cenas românticas dispensáveis. Acabo de ver o Beef que me deixa profundamente triste apesar de ser uma comédia. Tenho de ensebar as botas porque vai começar a chover. O jantar vai ser sopa e chamuças. Tenho de me lembrar mais vezes de não me sentar sobre as rodas do autocarro, pelo menos enquanto estiver calor.

O que eu quero

Eu não quero ser feliz.

Eu quero ter paz de espírito.

Eu quero ter comida no frigorífico; nada de especial, pão, manteiga, queijo e sopa.

Quero uma cama confortável, uma boa almofada, um edredon de penas.

Quero ter sempre água quente para tomar banho e para fazer chá.

Ter um tecto seguro e sem infiltrações sobre a cabeça.

Quero ter livros para ler e um quintal para jardinar.

Quero dar passeios no campo, no campo de verdade, onde não se ouvem carros nem aviões a passar.

Quero ser útil aos outros, quero fazê-los sentirem-se bem.

Não quero nunca mais ter dores.

Quero ser respeitada.

diário #20230925

Parece que passou um ano desde que aqui vim despejar minudências. A desculpa é sempre o cansaço, embora a preguiça e o medo tenham mais culpa no cartório. Depois de uma semana em que o corpo se queixou de quase tudo, esperava que a época do cozido começasse com mais frescura. Voltamos ao suadoiro no autocarro, mas sem tantas dores nas dobradiças. Tenho sonhado muito e dormido pouco, o braço esquerdo a acordar-me paulatinamente. No mesmo sonho tinha no quintal um pavão albino e um corvo amestrado, os melhores #lifegoals dos últimos meses. As dores deixam-me rabujenta e impaciente. As restrições alimentares frustram-me os prazeres da boca e até carcaças semi-queimadas com margarina me augaram esta semana. A dama-da-noite finalmente deu flor e invade-me a sala enjoativa e docemente. No local de trabalho continuo a trocar os rolos de papel higiénico e a emendar as burradas dos artistas que ganham bem mais do que eu. Uma funcionária de meia-idade (acho que posso considerar-me assim) nunca atingirá o status de um freelancer que se promove como a galinha dos ovos de ouro. O país vive às nossas costas, às nossas custas, empregadas com baixa autoestima que suportam cargas de trabalho cada vez maiores e reclamam pouco. Mil vezes investir em máquinas inúteis e toda a espécie de mordomias digitais do que pagar justamente a pessoas que trabalham. As regalias laborais são meramente performativas. Na copa, as conversas do costume, quem tem o melhor electrodoméstico, as férias mais distantes ou menos dinheiro na conta. A cidade continua suja, cheira a escape; os passeios estão peganhentos de sarro. Chego a casa exausta e encharcada e quase caio da sanita abaixo quando vou mijar porque o meu rabo está tão suado que faz aquaplaning no tampo. Que elegância!

Queimar livros, Richard Ovenden

“As bibliotecas e os arquivos enfrentam um novo desafio existencial, desafio esse que afecta a sociedade no seu todo. O conhecimento digital é cada vez mais regulado por poucas empresas de enorme dimensão e tanto poder que, quase sem querer, controlam o futuro da memória cultural, com implicações e consequências de que só agora começamos a ter consciência.”

Queimar livros, Richard Ovenden

diário #20230817

A senhora da caixa do Pingo Doce chamou-me de princesa. Não sei o que pensar disso. Estou quase a ir de férias de novo, vou fazendo férias assim, às pinguinhas e de borla, em casas de familiares. Gosto de ouvir as pessoas que reclamam do alojamento local em Lisboa contarem-me as suas férias alojadas localmente noutros países. Consegui limitar os livros que tenho em casa por ler a 4 prateleiras pequenas. Tenho outra prateleira com os livros que fui deixando a meio, a que chamo patriarchatus interruptus. Sinto que está iminente mais um ataque das formigas, encontro-as isoladas em vários cantos da cozinha, a fazerem o reconhecimento, a triangularem sinais, para fatalmente encarreirarem em direcção à despensa. Já aceitei que esta é uma guerra que não ganharei. Não me convenço a começar a escrever sem ter a certeza de que não vou ser interrompida. Como em 99% do tempo sei que o vou ser, não começo nada a sério nunca. A ficção científica que tenho lido ultimamente fez-me crer que este é o tipo de literatura mais filosófica que tenho encontrado; deixa-me dias a pensar após ter terminado os livros. Leio demasiado, leio para não pensar, como quem bebe para esquecer. Uma solidão intensa pulsa dos sítios da nossa infância que desapareceram. A minha mãe arrelia-se comigo porque não consigo fazer planos a longo prazo, porque eu, ao contrário dela, sei que é demasiado difícil atingir um alvo em movimento. Apontamos para o futuro a partir do presente e quando lá chegamos está tudo desfocado, acertámos ao lado, tudo virou passado. Que bela bosta de frase, eu sei, é foleiro mas é verdade. Ontem matei uma bicha-cadela na secretária, até aí achava que elas só existiam dentro do caroço dos pêssegos. Levei dois dias para me lembrar da palavra mosquetão.